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São Paulo, Pessoas en situaçao de rua e MacDonald's

Vou aproveitar que colei grau ontem e fazer textão sobre a minha paixãozinha econômica: desigualdade e população de rua.

Eu tive o privilégio de passar um ano inteirinho do meu primeiro estágio trabalhando com a Profa. Silvia Schor, uma das (se não a maior) referência desse país sobre a dimensão econômica da situação de rua. É ela que encabeçou todos os (bons) censos dessa população feitos em São Paulo desde 2000, já que o IBGE não contabiliza moradores de rua - as Prefeituras que têm dinheiro costumam encomendar esses estudos de órgãos privados como a Fipe, onde eu trabalhei.

Tive muita reunião com a Secretaria de Assistência Social, sabia de ponta a ponta os critérios de elegibilidade do De Braços Abertos, fui pra campo conversar com gente que não tinha nada além do crack e ajudei a construir o banco de dados com mais de 70 variáveis sobre os 16 mil moradores que encontramos na cidade. E essa introdução não é uma carteirada da minha expertise, mas é um testamento do quanto eu me importo com esse tema e com essas pessoas. De maneira que eu não posso desejar que a gestão Dória fracasse na cobertura social dessas pessoas. Eu espero do fundo do meu coração que a SMADS esteja fazendo o melhor trabalho possível no alívio de um dos maiores sofrimentos que um ser humano pode passar, mas eu também tenho entendimento suficiente da questão pra afirmar que o programa Trabalho Novo de novo nada traz e assume implicitamente o que o senso-comum não cansa de errar sobre a situação de rua: que a solução canônica é oferta de emprego. E existem algumas razões muito sérias que invalidam essa hipótese.

A primeira delas é a causa raíz da situação de rua: o mercado imobiliário. Não é educação, não é droga e nem emprego - é preço de casa e de aluguel. Toda a dinâmica habitacional - onde e com quem você mora - depende dos índices de preço da habitação, e a existência de moradores de rua é uma causa direta da escalada desses índices acima da inflação. Em português: se o seu salário não consegue pagar um aluguel E (ênfase no E) as suas necessidades básicas (roupa, comida, transporte), você parte pra uma alternativa habitacional - favela, cortiço, casa de parente. Se tudo dá errado, no limite você vai pra rua. E é por isso que a reportagem cita "pessoas altamente qualificadas" morando na rua. Eu conheci gente com médio completo, curso nisso e naquilo, falando bem e morando na rua. A real é que isso não é o que determina se você tá na rua ou não. O exemplo clássico: onde tem emprego, no Centro, é caro de morar. E onde tem casa mais barata, na ZL, é longe de onde tem emprego, e você gasta mais com transporte. É uma sinuca de bico principalmente pra quem não tem estrutura familiar que possa ajudar. Ou seja, você só acaba de vez com população de rua se você der um jeito nos preços dos aluguéis. Uma das evidências de que isso é verdade é o indicador de concentração de pessoas em situação de rua mais utilizado por aí, que basicamente conta quantos moradores de rua existem em uma cidade a cada 10.000 habitantes. Curiosamente toda grande cidade - Tókio, Madri, Paris, São Paulo - tem a mesma quantidade de moradores de rua em proporção à população, uma indicação de que a gênese do problema se conecta mais à dinâmica de ocupação do espaço do que à trama social da região.

A oferta de emprego pode ajudar? Sim, pode. No caso de São Paulo, só pra um punhado de pessoas, na minha opinião. Se fosse possível construir um indicador de vulnerabilidade que englobasse as várias dimensões sociais da pessoa que estão comprometidas (uso de drogas, saúde física e psicológica, nível de instrução), teríamos um número pra cada morador de rua que refletiria o quão fácil ou difícil é devolver a dignidade daquela pessoa, hipoteticamente. Se você ordenar todos por esse indicador, você tem uma lista de pessoas da mais fácil pra mais difícil de recuperar. No começo da lista você vai achar as pessoas que dormem em abrigos e que têm trabalho com carteira assinada - sim, temos cerca de 800 moradores de rua celetistas que não dormem todo dia na rua. Mais pro final você encontraria as pessoas da Cracolândia, uma vulnerabilidade tão grande que muitos estudiosos acreditam não haver ação em escala possível de retirá-los dessa situação. Apenas uma pequena parcela que NÃO trabalha teria algum benefício dessa medida. Breaking news: apenas 14% dos moradores de rua SÓ pede esmola. O resto se vira com catação, construção civil e bicos em geral. Desse universo que trabalha, alguns poucos ainda têm alguma capacidade de manter um emprego fixo - morar na rua gera profundas fragilidades psíquicas, e em 5 ou 10 anos de rua é difícil ter sanidade até pra saber que dia da semana é hoje. Isso dito, quase ninguém tem hoje condições de se manter em um posto de trabalho e de fato passar pela transformação social que o Trabalho Novo promete.

Tanto é verdade que iniciativas passadas de geração de emprego e capacitação profissional pra moradores de rua falharam tão bonito que desapareceram. Não basta que o contratante esteja disposto a arcar com as necessidades que essa pessoa tem: um salário mínimo NÃO GARANTE a saída da rua porque NÃO CONVENCE LOCATÁRIO NENHUM sobre o futuro do contrato. Quem vai ser o fiador dessa pessoa? E se ela não conseguir nenhum, o Programa Trabalho Novo vai tirar a garantia do abrigo que o beneficiário costumava dormir? Quanto tempo é necessário pra uma pessoa sair da rua? Esse tempo é menor que o limite máximo pra realocação dessas pessoas?

Dado que João Dória tem uma das maiores mansões de São Paulo, me soa improvável que seja do seu interesse influenciar a dinâmica do setor imobiliário no futuro próximo. E dado o seu gasto com propaganda 4 vezes maior que o da gestão anterior, me parece não ser uma coincidência que essa e tantas outras matérias positivas sobre as iniciativas da SMADS não apresentem nenhuma referência à nossa pesquisa de 2015. O que não me espanta. Contamos menos de 16 mil moradores de rua na cidade. João Dória insiste em comunicar a abertura de 20 mil vagas para essas pessoas. Se o Prefeito não entende o conceito de eficiência ou se não faz ideia do tamanho do problema que quer resolver, não sei. Sei que cada matéria dessa só consolida as falácias de um problema que é muito mais complexo do que consegue resolver um aperto de mão entre um político e o PR de uma rede de fast-food.

O poder do marketing é esse mesmo. Um monte de aplausos, nenhum questionamento.

Vitor Brumatti

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